sábado, 10 de julho de 2021

A Duplicidade do Insulto - ou Quando Este se Torna um Elogio

Com a crescente polarização política das sociedades ocidentais - fenómeno a que não escapa a sociedade portuguesa, ainda que, como habitualmente, aqui a coisa se faça sentir de forma mais tardia e mitigada - o recurso ao insulto para descredibilizar os adversários políticos, ou simplesmente qualquer pessoa que não concorde com as ideias que se pretende transmitir, tornou-se cada vez mais comum. E já chega a ser banal, o que é inaceitável no quadro de uma sociedade civilizada.

Mais do que a questão jurídica das eventuais injúrias e difamações, está em causa uma questão de princípio, de civilidade e de boa educação.

Há por outro lado que ter em conta que a mesma palavra pode ser um insulto ou um elogio, consoante aquilo que efectivamente queira dizer. Exemplificando:

- Se me chamarem racista querendo com isso dizer que discrimino pessoas em função da cor da sua pele, isso é claramente um insulto; já se para ser chamado de racista bastar ser contra a destruição de monumentos históricos e contra a diabolização do homem branco e da civilização ocidental, então é um elogio.

- Se me chamarem fascista querendo com isso dizer que apoio a instauração de qualquer tipo de ditadura de direita, então é um insulto; mas se para ser chamado de facista bastar ser contra a difusão e banalização das ideias da extrema-esquerda, então é um elogio.

- Se me chamarem xenófobo querendo com isso dizer que preconizo o ódio contra os estrangeiros e os quero todos fora de Portugal, isso é obviamente um insulto, mas se me chamarem isso apenas por defender que a concessão de vistos e autorizações de residência, naturalizações, etc., devem ser concedidos com cautela e com critério e não às três pancadas, então é um elogio.

- Se me chamarem comuna querendo com isso dizer que advogo a instauração de um regime totalitário de esquerda, isso não pode deixar de ser um insulto, mas se para ser chamado de comuna bastar defender ideias como a progressividade dos impostos ou o aumento do salário mínimo, então é certamente um elogio.

E assim por diante, o exemplos poderiam ser muitos.

Por estas e por outras razões, saber se um determinado epíteto é um insulto ou um elogio depende muito da respectiva origem.

Assim, regra geral, se alguém nos chamar uma coisa destas devemos ficar preocupados e procurar perceber porque estaremos (eventualmente) a transmitir uma tal impressão.

Já se o autor da afirmação for um revolucionário, seja de esquerda ou de direita, podemos sorrir e ficar tranquilos: significa apenas que estamos no caminho certo. 


quinta-feira, 20 de maio de 2021

Sistema Fiscal - O que é e para que serve?

O Sistema Fiscal é, em sentido jurídico, o conjunto de mecanismos legais que tem como objectivo assegurar a arrecadação das receitas necessárias a que o Estado possa cumprir as suas funções, nomeadamente as definidas na Constituição da República.

A tributação incide sobre os chamados "factos tributários", ou seja, factos demonstrativos (ou pelo menos indiciários) da capacidade contributiva (riqueza/capacidade para pagar/suportar o imposto) do contribuinte, e divide-se, ao nível dos impostos (principal tributo), essencialmente nos seguintes tipos:


1) Sobre o Rendimento:

Estes impostos incidem sobre os rendimentos obtidos pelo contribuinte e, no caso do IRS, há uma lógica de progressividade (quem tem maiores rendimentos, vê-os sujeitos a uma taxa mais elevada, pagando assim um imposto mais alto, não só em termos absolutos ma também em termos proporcionais).

A sua lógica ssenta na constatação evidente de que, quem tem rendimentos/receitas, enriquece e, como tal, tem nessa medida capacidade contributiva.


2) Sobre o Consumo:

Estes impostos têm como facto tributário o acto de consumir, por exemplo adquirindo um determinado bem ou serviço, acto esse demonstrativo de capacidade financeira e, por isso, também de capacidade contributiva.

Aplicam, regra geral, uma taxa fixa ao valor do consumo efectuado, sem progressividade, sendo o IVA o melhor exemplo deste tipo de imposto (de notar que o IVA tem várias taxas, aplicáveis a diferentes bens ou serviços, mas que não se alteram com o maior ou menor valor do consumo efectuado).

Estes impostos são por vezes criticados por serem socialmente «cegos» (não terem uma vertente de progressividade), e podem também ser questionados ao nível da dupla tributação, visto que o consumo consiste na utilização de riqueza que já terá sido tributada aquando a respectiva obtenção (através dos impostos sobre o rendimento).


3) Sobre o Património:

Estes impostos baseiam-se no facto tributário da simples detenção de património, nomeadamente imobiliário, que é demonstrativa de riqueza, mas não necessariamente de liquidez.

Nessa medida, constituem um estímulo à rentabilização ou alienação do património, o que pode constituir uma utilidade do ponto de vista da melhor organização e rentabilização dos activos imobiliários.

Levantam a mesma questão de dupla tributação referida no ponto anterior, quanto aos impostos sobre o consumo.


4) Impostos Especiais:

São impostos especificamente criados para onerar artificialmente a aquisição de determinados produtos ou serviços tidos por indesejáveis (v.g. tabaco, combustíveis, etc.).

Constituem por isso essencialmente uma forma de simultaneamente aumentar as receitas do Estado, ao mesmo tempo que se prosseguem finalidades extra-fiscais (protecção da saúde e/ou do ambiente, por exemplo).

Incidindo geralmente sobre o consumo, expõem-se à já supra referida crítica da dupla tributação.


As características acima referidas quanto a cada tipo de imposto são gerais e simplificadas. Cada imposto tem as suas características específicas, regras próprias, excepões a essas regras, isenções, benefícios fiscais, etc.

A complexidade do sistema fiscal, conjugada com a sua alteração muito frequente (pelo menos uma vez por ano, com o Orçamento do Estado), é um dos seus principais defeitos.

Ao longo dos anos, vão sendo acrescentados, modificados ou eliminados desvios à regras próprias de cada imposto, sob os mais variados pretextos (especial importância de determinada actividade económica, objectivos extrafiscais de orientação do consumo, concorrência fiscal com outros Estados, maior justiça social ou maior incentivo ao investimento, etc.).

Toda esta complexidade dificulta a operacionalidade do sistema, e bem como a activiade e o correcto cumprimento das obrigações fiscais pelos cidadãos e pelas pequenas e médias empresas, menos apetrechados ao nível da acessoria fiscal, jurídica e contabilística.


Conforme acima referido, a finalidade essencial do sistema fiscal é a obtenção de receitas para o prosseguimento das finalidades do Estado, entre as quais se contam a redistribuição da riqueza e a promoção da justiça social.

Por isso, a primeira coisa a fazer para o simplificar seria retirar-lhe a carga ideológica que, ano após ano e dependendo das cores políticas do governo em funções, lhe é permanentemente imprimida, e nem sempre sequer de forma coerente.


Um sistema fiscal justo deveria basear-se essencialmente na tributação progressiva sobre o rendimento. Assim evitariam os problemas da dupla tributação, e também o da «cegueira social».

As tributações sobre o consumo e sobre o património podem ser admitidas, mas deverão ser secundárias, ou mesmo residuais, e na pureza dos princípios poderiam mesmo ser abandonadas.

Os impostos especiais poderão ser também admitidos quando haja que desencorajar determinados comportamentos (v.g. consumo de combustíveis fósseis), ou simplesmente substituídos pela proibição desses comportamentos quando neles não haja nada de positivo (v.g. consumo do tabaco).

As taxas de imposto deverão ser uniformes em relação à origem dos rendimentos. Dinheiro é dinheiro, e o quantum da tributação deverá variar em função do montante do rendimento, abstraindo da actividade económica que lhe deu origem. Assim, teremos uma tributação ideologicamente neutra, financeiramente eficiente, justa, e assente em procedimentos mais simples.




domingo, 28 de fevereiro de 2021

De direita ou de esquerda?


A política é uma actividade humana de organização social, tão necessária à sociedade e a cada um dos seus elementos quanto outras actividades, como a da produção alimentar ou de bens essenciais, como a distribuição dos mesmos, a prestação de cuidados de saúde ou o ensino e a formação profissional, entre outras. Todas elas têm, ou deveriam ter, como propósito contribuir para a construção e a viabilização da vida em sociedade.

Fala-se muito se este ou aquele partido, ou se esta ou aquela pessoa é de esquerda ou de direita. Nenhum corpo tem só um lado direito ou um lado esquerdo, mas os dois. O corpo social ressente-se sempre que se cai nos extremos, no fanatismo, no estilhaçar da unidade e na integridade natural do seu corpo.

É preciso atender a todas as necessidades próprias da existencia humana, que não é individual ou colectiva, mas sim individual e colectiva. Que não é apenas razão mas também coração e necessidades materiais. Que não é apenas corpo mas também mente e espírito.

A vida não é de direita ou de esquerda, mas de direita e de esquerda. É sempre masculina e feminina. Ter que ser de direita ou de esquerda, parece-me um terrível e fracturante distractor do essencial.

A política tem que procurar construir o bem comum, assente em ideais e valores, concretos e realistas, não em ideologias ou em teorias, demagogias ou populismos.

O plano de acção de um partido que se propõe a servir a sociedade deveria ser coerente com a vontade expressa por Fernando Pessoa no seu poema do Amigo Aprendiz,

"Quero ser o teu amigo. Nem demais e nem de menos.

Nem tão longe e nem tão perto.

Na medida mais precisa que eu puder.

Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,

Da maneira mais discreta que eu souber.

Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.

Sem forçar tua vontade.

Sem falar, quando for hora de calar.

E sem calar, quando for hora de falar.

Nem ausente, nem presente por demais.

Simplesmente, calmamente, ser-te paz." (...)

e dirigido não apenas a uma ou a algumas pessoas, mas a toda a comunidade sujeita a essa política. Porque a sociedade é feita de pessoas que, se nas suas funções, no limite, não são absolutamente insubstituíveis, enquanto pessoas são-no. São únicas e irrepetíveis e não há forma de substituir quem se ama. E o sofrimento de uma pessoa afecta, directamente ou indirectamente, todas as outras, porque todos estão ligados nesta rede existencial humana. Todos são filhos de alguém.

Os eleitores delegam nos políticos que se propõem e comprometem a prestar um serviço, - que é fundamental e é remunerado, - o de gerir os recursos colectivos e a assegurar o funcionamento dos serviços e actividades fundamentais, de forma a permitir que a vida se desenvolva e as pessoas vivam, dignamente, livremente e de forma sustentável.

A complexidade da vida e o grande número de pessoas, que movem uma quantidade gigantesca de recursos, tornam a governação uma tarefa hercúlea e uma enorme responsabilidade. Mas a política e a governação também são feitas por cada pessoa em cada atitude, em cada pensamento, na forma como conduz a sua vida, gere os seus recursos e na forma como se relaciona, consigo, com os outros e com o mundo. E essa forma de estar, de sentir e de pensar determinam o tipo de política em que cada pessoa se revê, defende e promove. A sociedade será e deverá ser sempre uma construção colectiva. A política tem que prestar esse serviço, reflectir, decidir e agir, escolhendo governantes e elaborando as políticas necessárias e viabilizadoras da vida humana, fortalecendo o pacto social, em vez de o defraudar.

Mas num tempo em que há tanto relativismo, tanta ignorância e tanta arrogância, é até difícil encontrar uma linguagem comum e consensual. A um nível mais básico e instintivo todos querem bem-estar e felicidade. Mas a sua, a dos seus, aquela feita à sua medida, e apenas teórica e remotamente querem a de todos. Se não não haveria sem-abrigo, nem assaltos, nem mendigos, nem desespero, nem fome, etc. Se não não haveria tanto desperdício e produção de bens desnecessários e até destrutivos. Muitas vezes a felicidade ou pseudo-felicidade de uns, facilmente justificada de inúmeras maneiras, muitas vezes implica o aniquilamento de muitos outos.

Enquanto a sociedade não for uma comunidade, onde cada um é amado, reconhecido e valorizado, preparado e livre, capaz de ser e de ter parte, a sociedade não será realmente humana ou plenamente feliz. Porque se, como se costuma dizer, "a liberdade de um acaba onde começa a do outro", a felicidade de um realmente também acaba quando começa a infelicidade do outro. O ser humano é um ser individual intrinsecamente social e, enquanto não aceitar essa realidade e não se organizar com base nisso, não estará em harmonia com a sua natureza e com a natureza, até. Tudo está ligado. A política tem que compreender isso e integrar as várias dimensões da vida, da realidade e da pessoa. Nada é só; cada coisa é parte do tudo, pelas suas implicações.

Por isso o meu apelo é para que possamos desejar e procurar construir uma sociedade de pessoas para pessoas; que possamos contribuir bem; para esse bem. E que o nosso pensamento não seja fraturado e desagregante, de esquerda ou de direita; mas construtivo e humanizador. Que a nossa política seja de direita e de esquerda, do que é verdadeiramente necessário e bom. Pode dizer-se que isso é relativo, mas a vida não é relativa, ainda que possa ser melhor ou pior; ou se está vivo ou se está morto. As ideias podem variar, mas a realidade de se estar vivo, com todas as implicações e necessidades, não.

Guiomar Macedo


sábado, 30 de janeiro de 2021

Nem para a Esquerda, nem para a Direita

Uma das poucas ideias correctas do marxismo (por sinal não original, porque decalcada de Hegel) é a apresentação da dialética como modelo explicativo da evolução social. Em suma, quando uma sociedade evolui num determinado sentido (tese) tende a cometer excessos que provocam uma reacção igualmente exagerada de sentido contrário (antítese), acabando num terceiro momento por alcançar uma solução equilibrada (síntese). Este é um modelo saudável de evolução social.

Não é porém o único modelo possível. Também há um outro, que é a espiral. Nesta, os movimentos de sentido contrário, em vez de convergirem numa síntese, alternam ou concorrem entre si, aumentando a respectiva intensidade e radicalismo em resposta/reacção de parte a parte. Não é, de todo, um modelo saudável de evolução para uma comunidade humana.

Infelizmente, Portugal parece estar a atravessar uma fase de espiral política, com o fosso esquerda/direita a acentuar-se cada vez mais. Curioso, tendo em conta que há pouco tempo atrás, e ainda hoje, é voz corrente que a dictomia esquerda/direita já não faz sentido. E não devia, de facto, fazer. Mas a realidade impõe-se às nossas expectivas ideológicas, por mais bem intencionadas que estas sejam.

Como habitualmente, este fenómeno chega a Portugal depois de já ter ocorrido noutros países ocidentais, e por isso, já é conhecido, e será menos intenso do que é noutros países, como a França, na Espanha, na Itália ou nos Estados Unidos da América.

Depois do Estado Novo (ditadura de direita) e do PREC (tentativa de implantação de uma ditadura de esquerda), tinha-se alcançado uma síntese, uma democracia de tipo ocidental, confortavelmente apontada ao centro, e dominada por dois partidos moderados (PS e PSD), com dois partidos mais pequenos à direita e à esquerda, com representação parlamentar (CDS e PCP).

O modelo assentava no pressuposto tacitamente aceite pelos demais partidos com representação parlamentar, de que o PCP não deveria ser incluído em soluções/coligações de poder, atendendo à sua natureza revolucionária, marxista e não democrática, e do seu destacado papel no PREC. É aliás caricato que, em Portugal, se considerem os militantes de extrema-esquerda que combateram o Estado Novo como uma espécie «freedom figthers», quando na verdade, estando efectivamente a combater uma ditadura, o faziam com o objectivo de implementar outra ditadura...

Este modelo manteve-se durante a maior parte da actual Terceira República, e não sofreu alterações significativas com o aparecimento e consolidação do Bloco de Esquerda, que recebeu o mesmo tratamento que o PCP, atendendo à história e matriz ideológica dos partidos que o compõem, de raíz semelhante à do PCP.

O PS, PSD e CDS constituíam assim o chamado «arco da governabilidade», que não obstante as naturais diferenças ideológicas entre os três partidos, acentava no consenso existente, entre os três partidos, de que Portugal devia ser uma democracia de tipo ocidental.

Outra ideia dominante no pensamento político português tem sido a da indesejabilidade de governos de «Bloco Central», ou seja, de coligação entre PSD e PS. Este entendimento assenta na ideia de que o eleitorado deve ter uma alternativa de voto «dentro do sistema», precisamente para que não necessite de recorrer a partidos extremistas ou anti-sistema para ter uma opção de voto.

O grande abalo ao equilíbrio do sistema democrático português começou com o governo de Pedro Passos Coelho, que teve que implementar medidas muito drásticas e impopulares por imposição da Troika. Mas não só, e aí esteve o seu maior defeito. Este governo fez questão de salientar que não se limitava a cumprir as exigências da Troika para assegurar o financiamento do País, mas que ia além disso, impondo mais sacrifícios aos portgueses do que os que eram estritamente necessários, e que o fazia por razões ideológicas que o levavam a crer que esse caminho seria o melhor para assegurar o futuro desenvolvimento económico de Portugal.

Por essa razão, nas eleições seguintes, a coligação PSD/CDS foi, simultaneamente, a força política mais votada, mas também a mais unanimemente odiada pelos eleitores das restantes forças políticas, mostrando assim que a sociedade portuguesa estava, pela primeira vez, mais divida na fractura esquerda/direita do que na fractura partidos democráticos/partidos revolucionários.

Isso abriu caminho à «geringonça», que criou o grave precedente de incluir a extrema esquerda na esfera do poder e da governação, através do acordo de apoio parlamentar que celebraram com o PS, e que dura há já duas legislaturas.

O que por usa vez iniciou o momento de espiral que atravessamos, e que teve como principal manifestação o surgimento e rápido crescimento do Chega, partido populista de direita, de matriz revolucionária/anti-sistema.

Qualquer comunidade sabe que tem que se manter unida se quer sobreviver aos desafios que se lhe colocam, quer externa quer internamente. Sabêmo-lo desde sempre, porque nenhuma comunidade que se tenha desviado deste princípio alguma vez sobreviveu.

Nessa medida, se permitirmos a continuação do presente movimento de espiral política esquerda/direita, a comunidade socio-política portuguesa terá chegado ao seu fim, tal como a conhecemos. Isto não significa que Portugal como estado deixe de existir, mas antes que o nosso sistema social, político e legislativo (mesmo constitucional) poderá ser substancialmente modificado, para pior.

É verdade que qualquer sistema politico-social tem que evoluir, sob pena de se tornar obsoleto, inútil, o que também levaria à sua extinção.

Mas há uma diferença muito substancial entre evoluir e romper.

O centro-esquerda e o centro-direita partilham entre si a apologia do modelo democrático ocidental, conjugado com o reconhecimento de que o mesmo não é nem nunca será um trabalho acabado, e que por isso deve ser continuamente actualizado e reformado, sempre dentro do espírito e da matriz democrática ocidental.

O que os une é por isso muito mais relevante do que as diferenças ideológicas que os dividem.

Mas se não tiverem isso presente, e se deixarem arrastar pelas forças políticas revolucionárias dos seus respectivos campos, o resultado será um sistema democrático cada vez mais difícil de governar, e eventualmente ingovernável, que uma vez atingido o ponto da ingovernabilidade será revolucionariamente substituído por outro, provavelmente ditatorial, ou pelo menos «mais musculado», sob o argumento - que nessa altura será verdadeiro - da sua incapcidade de fazer face às necessidades do país.

A única forma de evitar este cenário é, asim, o continuar da colaboração governativa dos partidos do centro-direita e centro-esquerda, com manutenção dos partidos mais extremistas fora do círculo da governação.

Mas é preciso mais do isso.

É preciso não esquecer que os votos nos partidos revolucionários (de esquerda ou de direita) representam uma parte substancial do eleitorado, e democraticamente valem o mesmo que os votos nos partidos democráticos.

É por isso essencial que os partidos democráticos, em vez de hostilizarem os partidos à sua direita e à sua esquerda e o respectivo eleitorado, entrem em dialogo com eles, repudiando as suas ideias revolucionárias e anti-democráticas, mas não deixando de identificar as causas de insatisfação do eleitorado daqueles partidos com o actual status quo, e no quadro da Assembleia da República, em debate com todas as forças políticas aí representadas, encontrem soluções adequadas e satisfatórias para os problemas que afligem aqueles sectores da população.

As reformas a introduzir são muitas e constantes, nos mais variados campos, em matérias económicas, sociais, culturais, etc., mas a isso se chama vida social, História, e não nos deve desanimar nem desorientar: a organização e gestão da Sociedade é uma tarefa permanente e sempre inacabada, que devemos encarar com empenho, esperança e preserverança.

Nuno B. M. Lumbrales





quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Aviso à navegação

Há momentos em que tudo pode mudar e se não formos prudentes e avisados, podemos cometer grandes erros. Decidir apressadamente ou de "cabeça quente" pode ser um perigo.

Em diversas conversas que tenho tido com alguns amigos, temos reflectido na importância que é haver "massa crítica" e capacidade de análise, que o nosso País, a nossa cidade de Lisboa, por exemplo, sejam governados com inteligência e ponderação.

Nestes últimos meses, devido à pandemia, tudo está a mudar e temos alguma dificuldade em nos situar. 

Não podemos simplesmente "surfar" as ondas quando elas nos são favoráveis e, depois, deixar-nos a lamentar-nos nos períodos de escassez, num mar de águas paradas, onde falta o pão.

É muito importante pensarmos a médio e longo prazo: onde queremos chegar como País? Onde queremos que a nossa cidade de Lisboa chegue daqui a uns anos?

Tenho algum receio que nesta pandemia estejamos a seguir as respostas erradas. 

Que avaliação económica por exemplo foi feita para a terrível crise que os restaurantes e a hotelaria estão a sofrer? Em especial, que avaliação foi feita sobre o impacto do decretamento que o confinamento obrigatório dos restaurantes às 13h00 dos fins-de-semana representa?

No outro dia ouvia José Miguel Júdice e ele dizia que o que devemos é sobretudo defender a população de risco, não mandar fechar a nossa economia. Talvez tenha razão.

Enquanto advogado que trabalha na área do imobiliário em Lisboa, nos últimos tempos tenho também sentido que há todo um clima desfavorável ao investimento: além da demora que se agravou nos procedimentos, certamente devido à pandemia com o teletrabalho que levou a uma evidente descoordenação, acrescida da introdução de uma nova plataforma informática, mas também devido à entrada de toda uma nova equipa responsável pelo urbanismo, nota-se um crescente descontentamento da parte de muitos agentes no mercado, por decisões que se considera pouco amigas do investimento. Paira uma sensação de que as decisões são muito discutíveis e que não há sensibilidade à importância do investimento (sobretudo estrangeiro) na cidade e na nossa economia. 

Tenho assistido a alguns processos administrativos infindáveis e à necessidade de um acompanhamento jurídico muito para além do que seria à partida expectável, dados os entraves legais e as interpretações que são, no final, emitidas pela CM de Lisboa. O que se perde em termos de recursos que podiam estar aplicados de maneira mais produtiva é imenso!

Na Associação Build the City, de que faço parte e onde se debateu nos últimos anos as grandes alterações ocorridas na cidade de Lisboa, foi muito clara a conclusão de que a nossa cidade viveu os últimos anos devido a todo este investimento estrangeiro. Por causa dele e do turismo foi possível recuperar a cidade, melhorando o edificado e o espaço público. 

Não tenho dados concretos, mas espero que esta situação de maior dificuldade de investimento na nossa cidade não seja motivada por razões ideológicas; o Porto, por exemplo, já deu sinais muito claros de que pretende continuar a atrair investimento, baixando as taxas urbanísticas para metade nos próximos dois anos. A cidade governada por Rui Moreira sabe pelos vistos ler a realidade e envia um sinal muito claro de que é amiga do investimento.  

Muita da motivação ideológica não tem qualquer base racional e mal é se seguirmos apenas as pressões circunstanciais de agendas políticas - algumas delas internacionais e sem qualquer aplicabilidade à nossa realidade ou parangonas que nada têm a ver com uma análise séria da nossa situação.

Lisboa nos anos 80 e 90 estava abandonada, ninguém queria cá viver, leis de arrendamento completamente desajustadas tiveram como efeito a degradação da cidade.

Esta pandemia exige prudência, humildade e boa comunicação (sinais para que consigamos perceber para onde vamos). Se isso não acontecer, poderão haver fracturas difíceis de resolver devidas a má-gestão e falta de liderança - todos nós teremos que pagar a factura.

Por isso é importante que continuemos a pensar estrategicamente, com profissionalismo e competência e não façamos desvios repentinos que deitam a "carga do barco" a perder, agora que ela é tão-importante! 

Cada vez mais é importante dar ouvidos a quem sabe, antes de tomarmos decisões apressadas ou motivadas por meras "opiniões" ou por chavões.

Portugal, Lisboa, deveriam ter mais pessoas que se dedicassem a conversar, a pensar e a traçar rotas... afinal, durante alguns anos fomos especialistas nisso!





quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Marcelo, o Presidente Sol

    Luís XIV foi o percursor do absolutismo em França, e ficou conhecido como o Rei Sol.

    Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito à primeira volta com uma vitória esmagadora, sem oposição de relevo.

    Eleito num contexto de geringonça, contava-se que fosse o contra-poder necessário a um governo com uma base de apoio parlamentar demasiado vincada à esquerda.

    Teve um bom início de mandato, tendo tido uma actuação decisiva na tragédia de Pedrogão Grande, e nos incêndios em geral, impedindo que o Governo desvalorizasse a tragédia e abordasse o problema de frente, tomando as medidas necessárias.

    E esteve novamente à altura da situação quando surgiu a pandemia, dirigindo-se à nação em termos adequados e tomando a iniciativa de despoletar o processo de declaração do Estado de Emergência.

    Tudo levava a crer que um presidente com tamanha popularidade, força e experiência política fosse efectivamente o contra-peso necessário à geringonça.

    Infelizmente, a recente "pré-crise política" que se gerou à volta da discussão do orçamento de estado para o próximo ano deixou claro o quanto o Presidente se foi, progressivamente, rendendo à geringonça.

     As declarações públicas de Marcelo Rebelo de Sousa, no sentido de que as esquerdas teriam que se entender porque um bloco central não seria uma solução admissível (inviabilizando assim a estratégia do PSD de aproximação ao PS, de modo a não o deixar refém da extrema esquerda) ao mesmo tempo que pressionou o PSD a permitir a aprovação do orçamento constituem uma interferência presidencial na vida parlamentar e partidária que não teria sido permitida (quer pelos partidos, quer pela comunicação social) a qualquer outro Presidente. Pense-se no que seriam os protestos que teriam tido lugar se tivesse sido, por exemplo, Cavaco Silva a proferir esse tipo de declarações enquanto Presidente da República.

    A reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa tem parecido um dado adquirido, tendo em conta a não apresentação de outros candidatos nas áreas políticas do PSD, CDS (que erradamente consideram Marcelo Rebelo de Sousa como o seu candidato, e/ou não encontram candidato alternativo) e PS (este sim, clara e compreensivelmente satisfeito com o actual Presidente).

    Mas parece-o menos hoje do que já pareceu ontem, mostrando as sondagens uma consistente perda de intenções de voto, e não sendo sequer certa a sua candidatura que, relembre-se, não foi ainda formalizada.

    Nuno B. M. Lumbrales
    

    

sábado, 24 de outubro de 2020

Freitas do Amaral, a propósito das suas memórias: "Mais 35 anos de democracia" (Memórias Políticas III)

Das minhas primeiras memórias sobre a política conta-se o daquelas eleições presidenciais de 1986, em que o País viveu em suspenso e com uma enorme vibração, dividido entre Freitas do Amaral e Mário Soares. 

Freitas do Amaral morreu recentemente, foi uma figura muito importante da nossa democracia.

Vi-o há cerca de 3 anos nos anos do José Sarmento Matos, meu amigo também já desaparecido (um pouco antes de Freitas) e de quem era cunhado.

No ano passado, em Outubro, o meu amigo Joaquim Mendia, que havia sido assistente do Freitas na montagem do curso de Direito do Urbanismo, ofereceu-me este livro, cujo título dá nome a esta entrada hoje no blog. 

Freitas do Amaral escrevia magnificamente: uma escrita simples, clara e despretensiosa. Um homem de grande capacidade intelectual, um pedagogo. É por isso verdadeiramente um prazer ler estas memórias. 

Há algo um tanto ou quanto desconcertante neste homem: é um homem que não criou seguidores,  dele não nascem facções. Isso ter-lhe-á pesado no seu fado. Estava destinado a grandes voos, mas somou mais derrotas do que vitórias. Teve azar.

Penso que o País lhe deve uma justa homenagem enquanto homem público, enquanto académico, enquanto cidadão que o foi de forma exemplar, empregando a sua inteligência para ajudar a criar um país melhor.

A direita não lhe perdoou alguns gestos de independência, mas verdade seja dita, Freitas também não percebeu que na política como à mulher de César não basta ser sério; também é preciso parecer sério. E o seu problema é que foi uma voz isolada, demasiado só. Por isso talvez também o título do livro albergue o subtítulo "Um percurso singular". Creio que Freitas do Amaral não foi indiferente a esse "virar de cara" com que a direita foi marcando tantos dos encontros (ou melhor, os desencontros) que foi tendo com ele. Aliás, penso que lhe ficou uma certa amargura, algo com que ele não lidou nada bem. O que é pena, porque o seu percurso poderia ter sido mais feliz e acabou por ser um homem que aceitou cargos que creio honestamente que, para bem da sua tranquilidade, não deveria ter aceite, como a de Ministro dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates. Em boa verdade, o nosso amor-próprio pede-nos por vezes algum recato, pois é muito triste sentir que nos viram a cara na rua, como sei que tantos lhe fizeram. Não deveria ter aceite esse cargo, sobretudo por amor-próprio. Porque a incompreensão magoa muito, e não temos que nos sujeitar a ela.

Freitas do Amaral gostava do poema "Se" de Kipling:

Se podes conservar o teu bom senso e a calma
No mundo a delirar para quem o louco és tu...
Se podes crer em ti com toda a força de alma
Quando ninguém te crê...Se vais faminto e nu,
Trilhando sem revolta um rumo solitário...
Se à torva intolerância, à negra incompreensão,
Tu podes responder subindo o teu calvário
Com lágrimas de amor e bênçãos de perdão…

Freitas do Amaral acrescentou qualidade à vida pública em Portugal. Fê-lo com a inteligência do pensador e do académico, empregando as suas muitas qualidades ao serviço do País e dos Portugueses. Em cargos políticos, mas também sempre que, com a sua rara inteligência e capacidade de exposição, como cultor da ciência política e professor de Direito Público, como mestre e promotor da qualidade e constante melhoria da universidade (fundador por exemplo do curso da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa) e mais latamente da democracia, elevou o debate e a reflexão.

Este livro é um bom testemunho dum homem que se implicou e que se entregou em tantos e bons combates; foi pena porém os muitos amargos de boca, que o fizeram sofrer e nem sempre apaziguar a sua alma - e que me parece, por vezes, o levaram a posições para além do que seria sensato. 

A sua verdadeira vocação sempre foi mais a de pedagogo, do que a de político. Se tivesse sido Presidente da República, teria aí podido ser pedagogo - ficou muito perto disso, mas perdeu. No entanto, quis continuar jogar a política que não era bem para ele - e pagou um elevado custo por isso. Mário Soares não tinha nem a sua inteligência, nem a sua bagagem, era um homem muito mais prosaico que Freitas do Amaral, cuja natureza era verdadeiramente a dum académico. 

Creio neste aspecto que Adriano Moreira, percebeu muito melhor do que ele que a sua vocação também era muito mais a de académico e, talvez por isso, não o tenhamos visto a ter mais experiências políticas depois dos seus famigerados 4,5 % de votos do CDS: leu e interiorizou melhor do que Freitas o célebre ensaio de Max Weber, "a política como vocação". E afastou-se da política activa, razão porque da direita à esquerda permanece um homem prestigiadíssimo.



A Duplicidade do Insulto - ou Quando Este se Torna um Elogio

Com a crescente polarização política das sociedades ocidentais - fenómeno a que não escapa a sociedade portuguesa, ainda que, como habitualm...