Uma das poucas ideias correctas do marxismo (por sinal não original, porque decalcada de Hegel) é a apresentação da dialética como modelo explicativo da evolução social. Em suma, quando uma sociedade evolui num determinado sentido (tese) tende a cometer excessos que provocam uma reacção igualmente exagerada de sentido contrário (antítese), acabando num terceiro momento por alcançar uma solução equilibrada (síntese). Este é um modelo saudável de evolução social.
Não é porém o único modelo possível. Também há um outro, que é a espiral. Nesta, os movimentos de sentido contrário, em vez de convergirem numa síntese, alternam ou concorrem entre si, aumentando a respectiva intensidade e radicalismo em resposta/reacção de parte a parte. Não é, de todo, um modelo saudável de evolução para uma comunidade humana.
Infelizmente, Portugal parece estar a atravessar uma fase de espiral política, com o fosso esquerda/direita a acentuar-se cada vez mais. Curioso, tendo em conta que há pouco tempo atrás, e ainda hoje, é voz corrente que a dictomia esquerda/direita já não faz sentido. E não devia, de facto, fazer. Mas a realidade impõe-se às nossas expectivas ideológicas, por mais bem intencionadas que estas sejam.
Como habitualmente, este fenómeno chega a Portugal depois de já ter ocorrido noutros países ocidentais, e por isso, já é conhecido, e será menos intenso do que é noutros países, como a França, na Espanha, na Itália ou nos Estados Unidos da América.
Depois do Estado Novo (ditadura de direita) e do PREC (tentativa de implantação de uma ditadura de esquerda), tinha-se alcançado uma síntese, uma democracia de tipo ocidental, confortavelmente apontada ao centro, e dominada por dois partidos moderados (PS e PSD), com dois partidos mais pequenos à direita e à esquerda, com representação parlamentar (CDS e PCP).
O modelo assentava no pressuposto tacitamente aceite pelos demais partidos com representação parlamentar, de que o PCP não deveria ser incluído em soluções/coligações de poder, atendendo à sua natureza revolucionária, marxista e não democrática, e do seu destacado papel no PREC. É aliás caricato que, em Portugal, se considerem os militantes de extrema-esquerda que combateram o Estado Novo como uma espécie «freedom figthers», quando na verdade, estando efectivamente a combater uma ditadura, o faziam com o objectivo de implementar outra ditadura...
Este modelo manteve-se durante a maior parte da actual Terceira República, e não sofreu alterações significativas com o aparecimento e consolidação do Bloco de Esquerda, que recebeu o mesmo tratamento que o PCP, atendendo à história e matriz ideológica dos partidos que o compõem, de raíz semelhante à do PCP.
O PS, PSD e CDS constituíam assim o chamado «arco da governabilidade», que não obstante as naturais diferenças ideológicas entre os três partidos, acentava no consenso existente, entre os três partidos, de que Portugal devia ser uma democracia de tipo ocidental.
Outra ideia dominante no pensamento político português tem sido a da indesejabilidade de governos de «Bloco Central», ou seja, de coligação entre PSD e PS. Este entendimento assenta na ideia de que o eleitorado deve ter uma alternativa de voto «dentro do sistema», precisamente para que não necessite de recorrer a partidos extremistas ou anti-sistema para ter uma opção de voto.
O grande abalo ao equilíbrio do sistema democrático português começou com o governo de Pedro Passos Coelho, que teve que implementar medidas muito drásticas e impopulares por imposição da Troika. Mas não só, e aí esteve o seu maior defeito. Este governo fez questão de salientar que não se limitava a cumprir as exigências da Troika para assegurar o financiamento do País, mas que ia além disso, impondo mais sacrifícios aos portgueses do que os que eram estritamente necessários, e que o fazia por razões ideológicas que o levavam a crer que esse caminho seria o melhor para assegurar o futuro desenvolvimento económico de Portugal.
Por essa razão, nas eleições seguintes, a coligação PSD/CDS foi, simultaneamente, a força política mais votada, mas também a mais unanimemente odiada pelos eleitores das restantes forças políticas, mostrando assim que a sociedade portuguesa estava, pela primeira vez, mais divida na fractura esquerda/direita do que na fractura partidos democráticos/partidos revolucionários.
Isso abriu caminho à «geringonça», que criou o grave precedente de incluir a extrema esquerda na esfera do poder e da governação, através do acordo de apoio parlamentar que celebraram com o PS, e que dura há já duas legislaturas.
O que por usa vez iniciou o momento de espiral que atravessamos, e que teve como principal manifestação o surgimento e rápido crescimento do Chega, partido populista de direita, de matriz revolucionária/anti-sistema.
Qualquer comunidade sabe que tem que se manter unida se quer sobreviver aos desafios que se lhe colocam, quer externa quer internamente. Sabêmo-lo desde sempre, porque nenhuma comunidade que se tenha desviado deste princípio alguma vez sobreviveu.
Nessa medida, se permitirmos a continuação do presente movimento de espiral política esquerda/direita, a comunidade socio-política portuguesa terá chegado ao seu fim, tal como a conhecemos. Isto não significa que Portugal como estado deixe de existir, mas antes que o nosso sistema social, político e legislativo (mesmo constitucional) poderá ser substancialmente modificado, para pior.
É verdade que qualquer sistema politico-social tem que evoluir, sob pena de se tornar obsoleto, inútil, o que também levaria à sua extinção.
Mas há uma diferença muito substancial entre evoluir e romper.
O centro-esquerda e o centro-direita partilham entre si a apologia do modelo democrático ocidental, conjugado com o reconhecimento de que o mesmo não é nem nunca será um trabalho acabado, e que por isso deve ser continuamente actualizado e reformado, sempre dentro do espírito e da matriz democrática ocidental.
O que os une é por isso muito mais relevante do que as diferenças ideológicas que os dividem.
Mas se não tiverem isso presente, e se deixarem arrastar pelas forças políticas revolucionárias dos seus respectivos campos, o resultado será um sistema democrático cada vez mais difícil de governar, e eventualmente ingovernável, que uma vez atingido o ponto da ingovernabilidade será revolucionariamente substituído por outro, provavelmente ditatorial, ou pelo menos «mais musculado», sob o argumento - que nessa altura será verdadeiro - da sua incapcidade de fazer face às necessidades do país.
A única forma de evitar este cenário é, asim, o continuar da colaboração governativa dos partidos do centro-direita e centro-esquerda, com manutenção dos partidos mais extremistas fora do círculo da governação.
Mas é preciso mais do isso.
É preciso não esquecer que os votos nos partidos revolucionários (de esquerda ou de direita) representam uma parte substancial do eleitorado, e democraticamente valem o mesmo que os votos nos partidos democráticos.
É por isso essencial que os partidos democráticos, em vez de hostilizarem os partidos à sua direita e à sua esquerda e o respectivo eleitorado, entrem em dialogo com eles, repudiando as suas ideias revolucionárias e anti-democráticas, mas não deixando de identificar as causas de insatisfação do eleitorado daqueles partidos com o actual status quo, e no quadro da Assembleia da República, em debate com todas as forças políticas aí representadas, encontrem soluções adequadas e satisfatórias para os problemas que afligem aqueles sectores da população.
As reformas a introduzir são muitas e constantes, nos mais variados campos, em matérias económicas, sociais, culturais, etc., mas a isso se chama vida social, História, e não nos deve desanimar nem desorientar: a organização e gestão da Sociedade é uma tarefa permanente e sempre inacabada, que devemos encarar com empenho, esperança e preserverança.
Nuno B. M. Lumbrales