Discuto política com o Rui, e com outros amigos, há já muitos anos.
No que em particular diz respeito ao Rui, sempre me agradou trocar impressões com alguém que, sendo de esquerda, é ideologicamente moderado e intelectualmente honesto.
Isto faz com que seja possível encontrar terreno comum, debater as questões com seriedade, e na maior parte dos casos, chegar a acordos.
Era assim que deveria funcionar o nosso Parlamento. Era assim que deveria funcionar a concertação social. Era assim que deveria funcionar a sociedade em geral.
E, durante muitos anos, apesar das dificuldades e imperfeições do nosso sistema político, vivemos com a tranquilidade de saber que a alternância PS/PSD-CDS manteria o país confortavelmente apontado ao centro político, ou seja, que qualquer governo, de direita ou de esquerda, seria necessariamente moderado.
O Governo PSD-CDS de Passos Coelho foi o princípio do fim desse estado de coisas. De mãos em larga medida atadas pela Troika, mas também fazendo assumidamente questão de impôr aos portugueses sacrifícios superiores aos necessários por razões ideológicas, este governo dividiu profundamente a sociedade portuguesa.
Nas eleições seguintes, a coligação PSD-CDS foi a força política mais votada, demonstrando assim que muitos portugueses pretendiam a contnuação deste governo e consideravam necessários, ou pelo menos benéficos, os sacrifícios impostos pelas suas medidas. Mas é igualmente inequívoco que a maior parte dos portugueses não queria a continuação deste governo, e por isso votou nos partidos de esquerda. Muito embora ideologicamente isso até fizesse sentido, não creio que se possa dizer que, naquela eleição, alguém votou PS apostando num governo de bloco central - mas também tenho a certeza que muitos votantes do PS não queriam uma aliança com os comunistas.
E essa recusa da continuação do governo de Passos Coelho deu a António Costa a legitimidade democrática necessária para montar a geringonça, e governar com o apoio da esquerda comunista (em sentido lato, não distinguindo aqui entre as inpirações soviéticas e chinesas), muito embora também pudesse ter sido tentado um governo de bloco central, que necessariamente teria sido muito diferente daquele que o antecedeu e, nessa medida, teria satisfeito a vontade de mudança expressa pelo eleitorado. Ou até, pura e simplesmente, um governo socialista moniritário (sem geringonça), que PCP e BE deixariam passar para evitar que o PSD se mantivesse no governo.
Em suma: aqueles resultados eleitorais tornaram politicamente possível a geringonça, mas essa não era a única solução políticamente viável, e constituiu por isso uma escolha voluntária do PS de António Costa.
É bom relembrar que o 25 de Abril assinala o derrube do Estado Novo, mas não a implantação de uma democracia em Portugal. O 25 de Abril abriu caminho ao PREC, ao MFA, e quase atirou Portugal para uma ditadura comunista, que teria tido como resultado transformar-nos numa Cuba europeia, ou numa província espanhola, caso a NATO não estivesse disposta a permitir tal dislate.
A democracia só ficou assegurada com o 25 de Novembro, e por isso, em bom rigor, deveria ser esta a data do feriado.
A ameaça comunista foi bem real, tão real, que deu origem a um pacto tácito entre as forças democráticas com representação parlamentar, PS-PSD-CDS, segundo qual, fossem quais fossem os resultados eleitorais, o PCP nunca seria incluído no quadro das soluções de governo. Por identidade de razão, tal pacto de ostracização também foi aplicado ao BE.
O PS de António Costa, ao optar pela criação da geringonça, rompeu com este tabu, provocando a normalização e reabilitação política dos partidos comunistas (PCP e BE).
E isso é grave, porque estes partidos nunca foram, nem são, forças políticas democráticas. Se alguma dúvida houvesse a esse respeito, bastaria ver a pluralidade de ideias que reina nos seus congressos e grupos parlamentares: é precisamente a mesma unanimidade que não deixarão de nos impôr se alguma vez chegarem ao poder.
Após a sua eleição como líder do PSD, Rui Rio adoptou uma estratégia que lhe deu fama de frouxo à direita, mas que é perfeitamente lógica: em vez de continuar a fazer a birra dos passistas (não faço qualquer cordo com o PS porque nas últimas eleições me roubaram o chupa-chupa), Rui Rio decidiu que era melhor mostrar abertura ao PS para colaboração parlamentar do que deixá-lo refém da extrema esquerda. Ou seja, Rui Rio deu ao PS a escolha de se apoiar nas forças comunistas ou nas forças democráticas.
E António Costa escolheu, na sua segunda legislatura, manter a sua parceria com os partidos comunistas, tomando assim uma opção ideológica de fundo: o PS de António Costa considera-se ideológicamente mais próximo dos partidos comunistas do que do PSD. E foi uma escolha verdadeira, pois já nada o obrigava a isso.
Assim se consumou (esperemos que não definitivamente) a ruptura do pacto de regime entre centro-direita e centro-esquerda, que garantia a moderação do governo do país.
Todos crescemos habituados a ver um parlamento em que a clivagem ideologicamente mais profunda, a «fronteira», se situava entre a bancada do PS e as do PCP e BE; ou seja, uma clivagem que não era entre forças de direita e forças de esquerda, mas entre forças democráticas e forças comunistas.
Hoje, temos um parlamento em que a principal clivagem passou a ser efectivamente entre direita e esquerda, e em que cada um dos campos conta com os partidos moderados e não moderados do seu lado.
Assim surge, à direita, o espaço político do Chega, que mais não é do que um «Bloco de Direita», tão perigoso quanto o BE, sendo que este último só não surge como tal aos olhos dos socialistas por ser de esquerda e, por isso, ser parcialmente congénere do PS do ponto de vista ideológico.
Só que, precisamente pela mesma razão, muitos à direita que não se cansam de alertar contra os perigos do BE e do PCP, não conseguem ver que o Chega é farinha do mesmo saco, apenas se diferenciando pelo sinal ideológico estar à direita...
Não posso concordar mais com a afirmação de que a dictomia direita esquerda está ultrapassada, e é redutora, tendo como única vantagem a simplicidade.
Mas precisamente por isso, o importante é assegurar a cooperação e desenvolvimento das forças democráticas, sejam elas de esquerda ou de direita, que tenham um espírito pluralista, com vontade e capacidade para encontrarem terrenos comuns, e chegar a soluções negociadas e equilibradas para os problemas das pessoas e do país.
A união e a fraternidade fazem a força, e a divisão e o conflito a fraqueza, motivo pelo qual as forças de matriz revolucionária/não democrática (sejam elas de esquerda ou de direita), que vêm as demais formações políticas como inimigas e não como meramente adversárias ou até como potenciais parceiras, serão sempre parte do problema, e nunca da solução.
Nuno B. M. Lumbrales