quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Na Volta do Correio - ou resposta ao meu amigo Rui

 Discuto política com o Rui, e com outros amigos, há já muitos anos.


No que em particular diz respeito ao Rui, sempre me agradou trocar impressões com alguém que, sendo de esquerda, é ideologicamente moderado e intelectualmente honesto.


Isto faz com que seja possível encontrar terreno comum, debater as questões com seriedade, e na maior parte dos casos, chegar a acordos.


Era assim que deveria funcionar o nosso Parlamento. Era assim que deveria funcionar a concertação social. Era assim que deveria funcionar a sociedade em geral.


E, durante muitos anos, apesar das dificuldades e imperfeições do nosso sistema político, vivemos com a tranquilidade de saber que a alternância PS/PSD-CDS manteria o país confortavelmente apontado ao centro político, ou seja, que qualquer governo, de direita ou de esquerda, seria necessariamente moderado.


O Governo PSD-CDS de Passos Coelho foi o princípio do fim desse estado de coisas. De mãos em larga medida atadas pela Troika, mas também fazendo assumidamente questão de impôr aos portugueses sacrifícios superiores aos necessários por razões ideológicas, este governo dividiu profundamente a sociedade portuguesa.


Nas eleições seguintes, a coligação PSD-CDS foi a força política mais votada, demonstrando assim que muitos portugueses pretendiam a contnuação deste governo e consideravam necessários, ou pelo menos benéficos, os sacrifícios impostos pelas suas medidas. Mas é igualmente inequívoco que a maior parte dos portugueses não queria a continuação deste governo, e por isso votou nos partidos de esquerda. Muito embora ideologicamente isso até fizesse sentido, não creio que se possa dizer que, naquela eleição, alguém votou PS apostando num governo de bloco central - mas também tenho a certeza que muitos votantes do PS não queriam uma aliança com os comunistas.


E essa recusa da continuação do governo de Passos Coelho deu a António Costa a legitimidade democrática necessária para montar a geringonça, e governar com o apoio da esquerda comunista (em sentido lato, não distinguindo aqui entre as inpirações soviéticas e chinesas), muito embora também pudesse ter sido tentado um governo de bloco central, que necessariamente teria sido muito diferente daquele que o antecedeu e, nessa medida, teria satisfeito a vontade de mudança expressa pelo eleitorado. Ou até, pura e simplesmente, um governo socialista moniritário (sem geringonça), que PCP e BE deixariam passar para evitar que o PSD se mantivesse no governo.


Em suma: aqueles resultados eleitorais tornaram politicamente possível a geringonça, mas essa não era a única solução políticamente viável, e constituiu por isso uma escolha voluntária do PS de António Costa.


É bom relembrar que o 25 de Abril assinala o derrube do Estado Novo, mas não a implantação de uma democracia em Portugal. O 25 de Abril abriu caminho ao PREC, ao MFA, e quase atirou Portugal para uma ditadura comunista, que teria tido como resultado transformar-nos numa Cuba europeia, ou numa província espanhola, caso a NATO não estivesse disposta a permitir tal dislate.


A democracia só ficou assegurada com o 25 de Novembro, e por isso, em bom rigor, deveria ser esta a data do feriado.


A ameaça comunista foi bem real, tão real, que deu origem a um pacto tácito entre as forças democráticas com representação parlamentar, PS-PSD-CDS, segundo qual, fossem quais fossem os resultados eleitorais, o PCP nunca seria incluído no quadro das soluções de governo. Por identidade de razão, tal pacto de ostracização também foi aplicado ao BE.


O PS de António Costa, ao optar pela criação da geringonça, rompeu com este tabu, provocando a normalização e reabilitação política dos partidos comunistas (PCP e BE).


E isso é grave, porque estes partidos nunca foram, nem são, forças políticas democráticas. Se alguma dúvida houvesse a esse respeito, bastaria ver a pluralidade de ideias que reina nos seus congressos e grupos parlamentares: é precisamente a mesma unanimidade que não deixarão de nos impôr se alguma vez chegarem ao poder.


Após a sua eleição como líder do PSD, Rui Rio adoptou uma estratégia que lhe deu fama de frouxo à direita, mas que é perfeitamente lógica: em vez de continuar a fazer a birra dos passistas (não faço qualquer cordo com o PS porque nas últimas eleições me roubaram o chupa-chupa), Rui Rio decidiu que era melhor mostrar abertura ao PS para colaboração parlamentar do que deixá-lo refém da extrema esquerda. Ou seja, Rui Rio deu ao PS a escolha de se apoiar nas forças comunistas ou nas forças democráticas.


E António Costa escolheu, na sua segunda legislatura, manter a sua parceria com os partidos comunistas, tomando assim uma opção ideológica de fundo: o PS de António Costa considera-se ideológicamente mais próximo dos partidos comunistas do que do PSD. E foi uma escolha verdadeira, pois já nada o obrigava a isso.


Assim se consumou (esperemos que não definitivamente) a ruptura do pacto de regime entre centro-direita e centro-esquerda, que garantia a moderação do governo do país.


Todos crescemos habituados a ver um parlamento em que a clivagem ideologicamente mais profunda, a «fronteira», se situava entre a bancada do PS e as do PCP e BE; ou seja, uma clivagem que não era entre forças de direita e forças de esquerda, mas entre forças democráticas e forças comunistas.


Hoje, temos um parlamento em que a principal clivagem passou a ser efectivamente entre direita e esquerda, e em que cada um dos campos conta com os partidos moderados e não moderados do seu lado.


Assim surge, à direita, o espaço político do Chega, que mais não é do que um «Bloco de Direita», tão perigoso quanto o BE, sendo que este último só não surge como tal aos olhos dos socialistas por ser de esquerda e, por isso, ser parcialmente congénere do PS do ponto de vista ideológico.


Só que, precisamente pela mesma razão, muitos à direita que não se cansam de alertar contra os perigos do BE e do PCP, não conseguem ver que o Chega é farinha do mesmo saco, apenas se diferenciando pelo sinal ideológico estar à direita...


Não posso concordar mais com a afirmação de que a dictomia direita esquerda está ultrapassada, e é redutora, tendo como única vantagem a simplicidade.


Mas precisamente por isso, o importante é assegurar a cooperação e desenvolvimento das forças democráticas, sejam elas de esquerda ou de direita, que tenham um espírito pluralista, com vontade e capacidade para encontrarem terrenos comuns, e chegar a soluções negociadas e equilibradas para os problemas das pessoas e do país.


A união e a fraternidade fazem a força, e a divisão e o conflito a fraqueza, motivo pelo qual as forças de matriz revolucionária/não democrática (sejam elas de esquerda ou de direita), que vêm as demais formações políticas como inimigas e não como meramente adversárias ou até como potenciais parceiras, serão sempre parte do problema, e nunca da solução.


Nuno B. M. Lumbrales

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Espectros políticos ou a carta aberta ao meu amigo Nuno

Discuto amiúde com um confrade deste espaço o espectro político nacional. O Nuno que é óbvio e me dispensará o anonimato tem sempre a esse respeito uma linha de raciocínio que me inspira sempre a reflexão tutti frutti de sorrir, revirar os olhos, semi perceber sem poder concordar. E acho que tenho andado em busca do raciocínio mais elaborado do que a resposta que lhe dou sempre de que "lá estás tu, não é nada disso...". Expliquemos que o Nuno, tipo de uma ética conservadora de direita cristã em quase tudo tem para ele a convicção do seu ideário que oscilo entre concordar, compreender, respeitar. Tem para ele que a democracia se faz em sã dialética entre a esquerda, o centro e a direita, apesar das dissonâncias táticas. E eu concordo. Tem para ele que fenómenos de tipo "Chega" são preocupantes. E eu assino por baixo. Mas depois acrescenta com um sorriso que mete a extrema esquerda do PCP e Bloco de Esquerda no mesmo saco e lá chegamos ao início desta história em que me parece absurdo mas em que ao mesmo tempo não consigo refutar completamente esse ponto de vista, face aos "issues" menos democráticos dessas linhas partidárias. E na verdade o Nuno pensa nos cânones de quase toda a direita conservadora que os marxistas são um inimigo perigoso e a mim me pareceu sempre que mal mas com alguma dificuldade em explicar porque é que PCP, Bloco e Chega são coisas muito diferentes. Se calhar, antes disso e em honestidade intelectual explicar a mim próprio se são realmente coisas muito diferentes. Há dias alguém me deu uma ajuda. Um tipo insuspeito chamado Lobo Xavier. Dizia o Lobo Xavier algo muito interessante ao comentar o que lhe parece ser o DNA do Chega. Que pensou até determinado ponto que se sobrepusesse à ala mais direita do seu CDS mas que deixou de pensar assim. Essa ala mais direita (estou a citar de vaga memória) é de pessoas com respeito ao salazarismo, retornados com algum ressabiamento, elites e burgueses que de algum modo se sentiram destratados pela democracia, católicos mais conservadores que sintam ameaça liberal aos seus valores. Tudo pessoas clivadas à direita que até o chegam a achar demasiado à esquerda mas pessoas que ele tem por civilizadas, tratáveis, bem formadas. A arruaça surreal que ele vê no Chega não é nada disso e nada tem a ver com o resto da cultura partidária portuguesa. E depois falou da extrema esquerda sem lhe chamar extrema esquerda. Disse que eram partidos do sistema - no bom sentido. E mesmo que tenham para lá alguns tipos e alguns cânones de umas ideias mais déspotas ou revolucionárias a verdade é que jogam o jogo. Lobo Xavier disse duas coisas muito importantes para eu estruturar o meu raciocínio: apesar de algumas nuances internas a esquerda portuguesa faz parte do espectro benigno do sistema; apesar de algumas nuances internas o CDS faz parte do espectro benigno do sistema. Numa democracia pacificada de décadas são rivais ideológicos que contrapoem e por isso equilibram visões de economia e ética social. Fazem falta e todos já têm provas dadas de serem partes hábeis a dar soluções para o país. A visão de crispação ideológica historicamente agrilhoada a ditaduras e PRECS da vida está no DNA da História e dá "razões" a ambos os lados mas deve ser sobretudo História. As pessoas dos dois lados, com as suas crenças pessoais são apesar disso e em boa parte também por isso, pessoas de bem. Também aqui Lobo Xavier dizia uma coisa em que me revejo "conheço pessoas de muitos meios". Eu também. Isso ajuda-me a crer que nenhum dos lados é diabolizável ou dono da razão. Este é o primeiro ponto em que de repente me era cristalino porque é que o Nuno se equivoca. A "extrema esquerda" não é um foco de desequilíbrio. Pelo contrário é em haver contraponto entre essa esquerda que não é extrema e algumas ideias menos centrais de um DNA democrata cristão que há equilíbrio. O Chega é outra coisa: é um ideário atroz, medíocre, populista e desonesto e que ameaça o sistema. Não faz parte do espectro. É num outro sentido da palavra um espectro tenebroso. E este é o segundo ponto de equívoco do Nuno. A esquerda parlamentar não tem nada a ver com o Chega. Os homens da esquerda parlamentar partilham com os da direita parlamentar algumas ideias básicas de etica e humanismo e democracia. E isto faz toda a diferença entre tipos que não me assustam e tipos que me assustam (e me fazem rir, tem dias) Mas depois chegamos ao ponto em que o Nuno tem uma certa razão e em que as minhas teses vacilam e a visão do Lobo Xavier me suscita reservas.. E os devaneios totalitários dos cânones da esquerda? É verdade, há lá alguns tipos que ainda sonham com coisas parvas. E essa ala mais ressabiada do CDS. Serão todos assim tão "tratáveis"? Não o creio... Mas na fluidez natural de posições no espectro partidário essas nuances fazem parte. É também por isso que a esquerda e a direita parlamentar são importantes. São a muralha que nos separa do desconhecido selvagem. Mesmo que essa contenção tenha o duplo significado de fazer frente a alguns extremismos e ao mesmo tempo os assimilar e diluir na sua diversidade interna. Fecho com uma citação do mesmo debate, créditos a outro autor. Pacheco Pereira dizia que a forma como nos habituámos a contrapor esquerda e direita é redutora. Não podia estar mais de acordo. Rui Pedro Azevedo

sábado, 26 de setembro de 2020

Tenhamos a Coragem de Perdoar

    Está visto e mais que visto que a pandemia veio para durar... pelo menos até que apareça uma vacina ou um tratamento eficaz.

    Entretanto, arranjaremos maneira de ir vivendo com ela, e de ir minimizando os seus impactos.

    O impacto já causado, porém, é demasiado significativo para que possa ser ignorado, e o mesmo se diga do impacto que ainda está para vir quando cessarem as moratórias e suspensões actualmente em vigor, e que vão sendo sucessivamente prorrogadas

    É preciso por isso ter coragem para perdoar... dívida.

    As famílias dos trabalhadores sujeitos a despedimento ou a lay-off, e as pequenas/médias empresas, sobretudo as dos sectores de actividade que dependem da existência de um estabelecimento físico aberto ao público (como a restauração), são quem mais tem sofrido.

    Os apoios até agora anunciados são sobretudo moratórias ou suspensões, que mais tarde ou mais cedo terão que acabar. E aí, de forma mais ou menos escalonada, as dívidas terão que ser pagas na sua totalidade, quando as receitas correspondentes aos mesmos períodos de tempo não o foram.

    É evidente que vai correr mal. Esta «solução» apenas o é na aparência, já que, economica e financeiramente, não é sustentável. Não se pode em boa fé dizer a um devedor que se viu subitamente privado da totalidade ou quase dos seus rendimentos (e sobretudo do seu rendimento disponível) que se espera que ele venha a pagar na totalidade dívidas referentes a períodos em que não teve receitas.

    Os danos causados por uma situação súbita e imprevisível como esta pandemia deveriam por isso ser repartidos entre credor e devedor, concedendo-se a este último não uma mera suspensão de pagamento, mas uma efectiva redução da dívida.

   Nos empréstimos bancários concedidos a PME's poderia haver um perdão de juros referentes ao período em que a empresa não tenha podido laborar ou comprovadamente tenha tido a sua actividade séria e subitamente afectada; no caso dos arrendamentos, para comércio ou para habitação (no caso de trabalhadores despedidos ou sujeitos a lay-off), poderia haver uma redução da renda, de modo a repartir o sacrifício equitativamente entre senhorio e inquilino.

    Sublinhe-se, estão em causa medidas temporárias e excepcionais, a vigorar apenas durante o período de excepção criado pela pandemia, e que deveriam ser consideradas, no mínimo, para o período (ou períodos, se a situação se vier a repetir) do confinamento obrigatório.

    É verdade que, se a vacina ou medicamento eficaz tardar a aparecer, a situação se poderá tornar mais estrutural. Mas aí, será o próprio mercado que, na negociação dos novos contratos, se encarregará de adequar as condições contratuais à situação de facto existente. O importante, do ponto de vista da governação, será regular a situação de emergência/imprevista, que mudou de forma radical a situação de facto existente sem que o mercado tenha tido tempo de funcionar e de se adaptar.

Nuno B. M. Lumbrales

A Duplicidade do Insulto - ou Quando Este se Torna um Elogio

Com a crescente polarização política das sociedades ocidentais - fenómeno a que não escapa a sociedade portuguesa, ainda que, como habitualm...