domingo, 28 de fevereiro de 2021

De direita ou de esquerda?


A política é uma actividade humana de organização social, tão necessária à sociedade e a cada um dos seus elementos quanto outras actividades, como a da produção alimentar ou de bens essenciais, como a distribuição dos mesmos, a prestação de cuidados de saúde ou o ensino e a formação profissional, entre outras. Todas elas têm, ou deveriam ter, como propósito contribuir para a construção e a viabilização da vida em sociedade.

Fala-se muito se este ou aquele partido, ou se esta ou aquela pessoa é de esquerda ou de direita. Nenhum corpo tem só um lado direito ou um lado esquerdo, mas os dois. O corpo social ressente-se sempre que se cai nos extremos, no fanatismo, no estilhaçar da unidade e na integridade natural do seu corpo.

É preciso atender a todas as necessidades próprias da existencia humana, que não é individual ou colectiva, mas sim individual e colectiva. Que não é apenas razão mas também coração e necessidades materiais. Que não é apenas corpo mas também mente e espírito.

A vida não é de direita ou de esquerda, mas de direita e de esquerda. É sempre masculina e feminina. Ter que ser de direita ou de esquerda, parece-me um terrível e fracturante distractor do essencial.

A política tem que procurar construir o bem comum, assente em ideais e valores, concretos e realistas, não em ideologias ou em teorias, demagogias ou populismos.

O plano de acção de um partido que se propõe a servir a sociedade deveria ser coerente com a vontade expressa por Fernando Pessoa no seu poema do Amigo Aprendiz,

"Quero ser o teu amigo. Nem demais e nem de menos.

Nem tão longe e nem tão perto.

Na medida mais precisa que eu puder.

Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,

Da maneira mais discreta que eu souber.

Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.

Sem forçar tua vontade.

Sem falar, quando for hora de calar.

E sem calar, quando for hora de falar.

Nem ausente, nem presente por demais.

Simplesmente, calmamente, ser-te paz." (...)

e dirigido não apenas a uma ou a algumas pessoas, mas a toda a comunidade sujeita a essa política. Porque a sociedade é feita de pessoas que, se nas suas funções, no limite, não são absolutamente insubstituíveis, enquanto pessoas são-no. São únicas e irrepetíveis e não há forma de substituir quem se ama. E o sofrimento de uma pessoa afecta, directamente ou indirectamente, todas as outras, porque todos estão ligados nesta rede existencial humana. Todos são filhos de alguém.

Os eleitores delegam nos políticos que se propõem e comprometem a prestar um serviço, - que é fundamental e é remunerado, - o de gerir os recursos colectivos e a assegurar o funcionamento dos serviços e actividades fundamentais, de forma a permitir que a vida se desenvolva e as pessoas vivam, dignamente, livremente e de forma sustentável.

A complexidade da vida e o grande número de pessoas, que movem uma quantidade gigantesca de recursos, tornam a governação uma tarefa hercúlea e uma enorme responsabilidade. Mas a política e a governação também são feitas por cada pessoa em cada atitude, em cada pensamento, na forma como conduz a sua vida, gere os seus recursos e na forma como se relaciona, consigo, com os outros e com o mundo. E essa forma de estar, de sentir e de pensar determinam o tipo de política em que cada pessoa se revê, defende e promove. A sociedade será e deverá ser sempre uma construção colectiva. A política tem que prestar esse serviço, reflectir, decidir e agir, escolhendo governantes e elaborando as políticas necessárias e viabilizadoras da vida humana, fortalecendo o pacto social, em vez de o defraudar.

Mas num tempo em que há tanto relativismo, tanta ignorância e tanta arrogância, é até difícil encontrar uma linguagem comum e consensual. A um nível mais básico e instintivo todos querem bem-estar e felicidade. Mas a sua, a dos seus, aquela feita à sua medida, e apenas teórica e remotamente querem a de todos. Se não não haveria sem-abrigo, nem assaltos, nem mendigos, nem desespero, nem fome, etc. Se não não haveria tanto desperdício e produção de bens desnecessários e até destrutivos. Muitas vezes a felicidade ou pseudo-felicidade de uns, facilmente justificada de inúmeras maneiras, muitas vezes implica o aniquilamento de muitos outos.

Enquanto a sociedade não for uma comunidade, onde cada um é amado, reconhecido e valorizado, preparado e livre, capaz de ser e de ter parte, a sociedade não será realmente humana ou plenamente feliz. Porque se, como se costuma dizer, "a liberdade de um acaba onde começa a do outro", a felicidade de um realmente também acaba quando começa a infelicidade do outro. O ser humano é um ser individual intrinsecamente social e, enquanto não aceitar essa realidade e não se organizar com base nisso, não estará em harmonia com a sua natureza e com a natureza, até. Tudo está ligado. A política tem que compreender isso e integrar as várias dimensões da vida, da realidade e da pessoa. Nada é só; cada coisa é parte do tudo, pelas suas implicações.

Por isso o meu apelo é para que possamos desejar e procurar construir uma sociedade de pessoas para pessoas; que possamos contribuir bem; para esse bem. E que o nosso pensamento não seja fraturado e desagregante, de esquerda ou de direita; mas construtivo e humanizador. Que a nossa política seja de direita e de esquerda, do que é verdadeiramente necessário e bom. Pode dizer-se que isso é relativo, mas a vida não é relativa, ainda que possa ser melhor ou pior; ou se está vivo ou se está morto. As ideias podem variar, mas a realidade de se estar vivo, com todas as implicações e necessidades, não.

Guiomar Macedo


4 comentários:

  1. Quando acabei de ler, tinha uma imagem na cabeça. Uma das raras pessoas que desde sempre usou, teve essa linha de pensamento, mas poucos o quiseram entender: Arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles.
    Às vezes penso que foi mais entendido pelas mentes límpidas das crianças do pelos adultos do seu tempo.

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    1. Muito obrigada, Tia. Isso é um elogio gigante. Beijinhos

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  2. Gostei de ler amiga 😍 era bom que assim fosse!

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